Narciso era um rapaz muito belo. O Oráculo o alertou de que não deveria contemplar o próprio rosto, sob o perigo de ter a sua vida arruinada. No entanto, Narciso, arrogante, não conseguia se apaixonar por outras pessoas, pois nenhuma correspondia à magnitude inalcançável de suas expectativas, nenhuma era tão perfeita quanto ele. Dito isto, Narciso confrontou a sabedoria do Oráculo e mirou o próprio reflexo na face do lago. Não deu outra, tendo uma queda possessa por si, mergulhou no lago para abraçar a própria imagem e se afogou.
O mito de Narciso, atemporal, se reflete (com o perdão da palavra) até nos dias de hoje. Freud, inspirado nesta mitologia, criou o termo narcisismo, denominando aqueles que nutrem uma paixão exacerbada por si mesmos. A triste notícia a qual devo revelar: todos nós, sem exceção, temos um quê de Narciso.
Indefinidamente, abrimos e fechamos as redes sociais freneticamente na esperança de encontrar uma nova notificação acerca do nosso conteúdo? Inconscientemente, roçamos o dedo na tela para atualizar o feed, na expectativa de notar que nos curtiram? Quantas vezes, obsessivamente, pegamos o celular ao passar perto dele na fome selvagem por uma manifestação sobre o que postamos?
Tem-se alimentado um costume robótico, uma sede insaciável de receber curtida, comentário ou o que quer que seja. Necessita-se de uma validação qualquer para alimentar um ego cada vez mais faminto, um ego numa busca frenética para se ver reconhecido. Se esta besta não é alimentada, parece nos devorar.
Como canta Caetano: “É que Narciso acha feio o que não é espelho”. Nos apaixonamos por expectativas, não por pessoas. Sendo assim, o egoísmo prevalesce. Depositamos nossa carga de fantasia noutrem e, quando não atendida, minguamos a relação. Precisamos ver nosso reflexo por toda parte, tudo é espelho e vitrine. Só há um detalhe, esquecemos que os outros também refletem sobre nossa superfície. O que ocorre quando se põe um espelho de frente ao outro? Uma miríade de reflexões.
Talvez a necessidade quase fisiológica de obter validação, seja um vício dentro do amor próprio. Almejamos o culto ao nosso corpo, nos convencemos de que aquilo que escrevemos é único e perfeito, acreditamos que somos incríveis e insuperáveis. É doce e confortável acreditar nas próprias miragens. A verdadeira face se acomoda tímida nos fundos.
O desejo por aprovação nos adentra acompanhada do autojulgamento. Nos crucificamos em razão do reflexo perfeito do outro, nos apaixonamos por uma figura inexistente. Afinal, o que inexiste, o que é inalcançável, é mais bonito. À medida que nos tornamos o outro ao invés de nós, esquecemos de nossa singularidade. A comparação deixa de ser comparação, vira uma integração. O outro ser impossível ingressa em nossa carne, em nosso cerne, de tal forma que vamos adicionando mais e mais penas neste cisne negro.
Hoje em dia, na era da dopamina, nos estufamos de prazer. Todos os estímulos possíveis na palma da mão. Busca-se cegamente consumir o máximo de prazer num curto espaço de tempo. Sobrecarregamos o corpo e a mente. A concentração vai para o espaço, afina a parede entre o real e a ficção e, tal qual o uso duma outra droga qualquer, somos tomados de assalto por um sentimento de vazio, de nada, definhamos. Somente outra injeção de dopamina pode nos levantar outra vez, então o ciclo vicioso se repete. Uma questão de saúde pública, todos vêm andando com esta droga nos bolsos.
Não por acaso, a solidão é um mal terrível, se foge dela como o diabo foge da cruz. É talvez o destino final e temido por todos. No entanto, sempre teremos nós mesmos para nos salvar. Apenas lembremos, se mergulharmos demais na própria imagem, o destino pode ser uma tragédia.
Narciso
meus olhos refletem no outro
vejo o que quero ver
beijo minha imagem e semelhança
talho-me no corpo alheio
caibo em todos os cantos
estampo-me nas coisas
sou a agulha no palheiro
(e, como eu, todos)
vou me furando por aí
na vã missão do encontro
eu, mero Narciso, iludido
quebro a cara em poças rasas
debato e debato e naufrago
quando aprenderei a nadar
longe das minhas margens?
Até uma próxima vez!