Sobre o tempo e sua incapacidade de olhar para trás
O presente é uma bala, doce ou amarga, e o passado o que a embala, logo descartada.
Tendemos a ignorar o passar do tempo. Sabemos que ele é aquela presença intangível, mas que está sempre com as mãos pesadas em nossos ombros. No entanto, não queremos olhar para o lado e dar de cara com a sua face rugosa, ou pior, de espiar na sua margem o nosso velho e liso rosto da infância. Revisitar-nos no auge de nossos poucos centímetros é apunhalar lentamente o peito. Antes tudo parecia mais doce, mais leve, os dias eram açucarados, mas nos invisíveis bastidores lá estavam nossos pais carregando o mundo nos ombros. Pois bem, o tempo vai passando e parece apressar o passo a cada ano. Os dias vão ficando menores ante tantas atribuições que esta vida de gado nos proporciona. Não demora para que desejemos voltar no tempo, sem saber que no passado também queríamos voltar. Queremos regressar toda a vida, tendo em vista que o futuro é uma penumbra e sabe-se que toda treva abriga monstros (imaginários ou não).
Cronos
O tempo come Vai nos roendo até os o s s o s.
Adriel Alves
Tenho percebido que tenho tido cada vez menos tempo para fazer aquilo que amo. Isso inclui escrever, ler, visitar os amigos, aprimorar meus conhecimentos… Tenho uma gana de devorar arte. Se eu pudesse leria todas as grandes obras, consumiria todas as ilustrações, degustaria todas as canções… Mas, ainda que vivesse por séculos, jamais conseguiria. Eis nosso maior desafio, escolher bem o que vamos consumir nesta vida tão efêmera. Me sinto como aquele curioso inseto, o efemeróptero. Este ser azarado só vive por um dia. Nesse meio tempo, ele deve se reproduzir e perpetuar (se é que se pode dizer assim) a sua espécie. Um dia para ele talvez seja muito tempo. Para mim, um século não bastaria.
Nisso me inspirei para o meu poema Piscar de Olhos:
No efêmero o infinito acontece Pelo temor da lúgubre morte Que vem alheia à prece No armário um sem fim de ossos Num piscar de olhos, juntamo-nos a eles O tempo nos ceia a lentas garfadas Deve-se sentir o gosto das coisas Antes do último naco devorado.
Há quem pouco se importa com o correr do tempo. Vai vivendo cada dia como se não houvesse passado ou futuro, e não há mesmo, a gente que inventa. Essas pessoas são chatas. Relembrar é sofrer, expectar é sofrer. Alguém que não tem cicatrizes também tem menos beleza. Cicatriz é um ouro em nossas fendas, um kintsugi, necessário para trazer firmeza a esta nossa vida-porcelana.
Deixo aqui recomendada a minha crônica Viveu Muito, Viveu Pouco, a qual teve como inspiração basilar um personagem real, o pai do meu sogro, já falecido, que odiava sair de casa e passava os dias somente a desfrutar de seu pequeno jardim.
Viveu Muito, Viveu Pouco
Conheci um senhor idoso que só chegou a ver o mar depois dos 80 anos, mesmo morando em uma cidade litorânea a maior parte de sua vida. Não tinha muito interesse no lado de fora de sua residência, preferiu passar o resto dos seus dias em seu escritório a mexer nos discos, revistas, livros… Aquele pequeno cômodo era o seu universo. O miúdo espaço onde via as horas passarem era ocupado por memórias tangíveis: dormiam em estantes de ferro os seus bolachões, antigos discos que continham somente uma música por lado; as revistas de teor político, de fofoca e eróticas; as fitas e DVDs de filmes que marcaram época e os antigos cartazes de cinema, que sempre foi a sua paixão. Seu leito era rodeado de pôsteres de filmes, nos quais admirava a beleza incorruptível das estrelas de Hollywood: Brigitte Bardot, Marilyn Monroe, Audrey Hepburn, Elizabeth Taylor, Sophia Loren, e muitas outras. Eram as estrelas da noite, algumas já deixaram a existência mas não largaram o brilho, e iluminavam os dias daquele velho senhor.
Ele viveu arduamente por muitos anos. Tinha uma memória de elefante e penetrava nas horas com uma fala arrastada, contando de sua juventude aos filhos e netos, como se aquele corpo envelhecido permeando o presente fosse só um detalhe, afinal, a carne é só uma ferramenta para concretizar as vontades da essência. A lembrança é uma máquina do tempo que vem instalada dentro de todos nós.
Outra paixão do velho era o seu jardim, de frondosas folhas e glamorosas rosas. Apesar das mazelas da "melhor idade", se metia a se ajoelhar no chão de cimento para sujar a mão de terra, podar as plantas ou admirar as flores, numa aptidão física de fazer inveja aos mais jovens. Por fim, dizia que viveria até os 100 anos para que lhe preparassem uma grande festa, mas a vida tem os seus próprios planos e pediu à morte que o levasse para a casa de São Pedro, que era como a sua falecida esposa chamava o paraíso.
Não sei se ele abrigou arrependimento por ter levado uma vida tão reclusa, mas, sinceramente, acho que não. Cada um cria sua própria cela e joga a chave fora. Há quem viva em um ano mais do que alguns vivem em cem, mas a vida não se mede por números. O que é uma vida boa? Para nós pode ser viajar o mundo e para outra pessoa pode ser ficar em paz no conforto do lar. A beleza da vida é que ela é uma roupagem única, a vestimenta de um não veste o outro. Não há norma ou o manual Como Viver Corretamente, ainda que muitos o vendam a quem ousa acreditar nas instruções. Vive corretamente quem se embriaga da fonte da felicidade, isso é preciso afirmar.
"Navegar é preciso, viver não é preciso", diz a célebre frase. É isto, navegamos em um oceano imenso e desconhecido, sem bússola, sem mapa, somente a nossa vela balançando aos quatro ventos do destino, ora acendendo, ora apagando. No desbravar dos mares revoltos, esbarramos ao acaso em tesouros, em monstros e em terra firme. A cada dia enfiamos a mão na Caixinha de Surpresas e tiramos um acaso que, mesmo com todas as escolhas que julgamos certas, ainda poderá nos desagradar.
Bye, Bye! Nos vemos num próximo encontro, se o tempo nos der o ar da graça.