Pé de Jambo: O tapete rosa da Rua 745
Um dossiê de lembranças e como elas pavimentam nossos sentidos.
Tem dias que a infância bate forte dentro da gente, lateja e se faz ouvir. Dia desses lembrei da querida Rua 745, onde fica a casa da minha avó, Dona Dolores. Amava aquela via, tanto pela alegria que pulsava nas crianças da vizinhança quanto em virtude de um ser ilustre que ali habitava, o pé de jambo. Quando chegava a sua floração, o chão se vestia de rosa choque. Era sinal de que em breve poderíamos degustar seus frutos.
Houve uma época de muros baixos e vazados, pelos quais se viam os moradores das casas aguando o jardim ou vislumbrando o tempo passar em suas cadeiras de balanço. Na casa da minha avó, a mureta era tão pequena que era possível, mesmo com a pernas curtas de moleque, facilmente pular por cima dela. Assim, eu e meu irmão e nossos amigos brincávamos infinitas vezes de saltar para dentro e para fora da casa, nos sentíamos com superpoderes.
Entre uma brincadeira e outra, a meninada parava para catar pedras e lançá-las nos galhos do jamboeiro. Depois de acabar com a paciência da persistência, acertavam em cheio e colhiam seu prêmio, um fruto rubro e brilhoso. O jambo é uma fruta modesta, não muito doce, levemente azeda, levemente amarga. Talvez, por ser assim tão indecisa, não seja tão vendida nos supermercados. No entanto, para meu paladar, especificamente, o jambo tem um sabor especial. É o tempero único da nostalgia, da lembrança. Ao comer um jambo volto imediatamente para a antiga rua 745, recheada de gritos eufóricos de crianças pulando muros, jogando bola e derrubando frutos.
Já faz algum tempo que enterraram a rua 745 num caixão de asfalto. O enorme pé de jambo foi derrubado. As casas aumentaram seus muros e instalaram cercas de arame e câmeras de segurança. Aquelas crianças cresceram e a rua ficou silenciosa. Confinaram-se todos em suas respectivas residências e a via, que era como uma coisa viva, deixou de respirar.
Sempre que vou visitar a minha vó eu lembro daqueles tempos e às vezes até pergunto por onde andam algumas daquelas crianças que brincavam comigo. No entanto, aos seus 99 anos de idade, minha avó não tem mais condições de me atualizar, mas me traz serenidade ouvir as mesmas histórias que ela sempre me conta, empolgada, como se fossem inéditas. O tempo tem dessas de entristecer as coisas no passar dos anos.
Há muito tempo que não ponho um jambo na boca. Enquanto escrevia esse texto, minhas papilas gustativas pareciam saborear um fruto invisível. A lembrança é o maior dos sentidos, é aquele que reúne os outros para uma roda de conversa. Viver é lembrar e, com o passar da vida, a bagagem vai se estufando cada vez mais, até o ponto em que se tornará uma tarefa árdua carregá-la…
Vovó Iô
Dona Iolanda, ou como lhe chamavam os netos: Vovó Iô, costumava levar o seu hobby de assistir novelas muito a sério. Ela reservava ao lado da TV um caderninho para anotar o resumo de cada episódio que assistia, tomando notas particulares acerca do que lhe empolgava nas tramas.
No entanto, o que mais lhe deixava eufórica era a visita tão esperada de seus netos. A primeira coisa que fazia era dar um sermão nos sumidos. No auge de sua insatisfação, dizia que iria em breve para a casa de São Pedro, que era como denominava o paraíso. Bastava um pequeno instante de prosa com seus queridos descendentes para esquecer do drama e sorrir com as novidades.
O tempo arrancou da Vovó Iô o seu passatempo preferido. Não conseguia mais acompanhar as imagens das novelas na TV pois a vista estava minguando progressivamente. Até que chegou o momento em que ouvia somente os áudios. Reclamava sempre desse infortúnio, logo citava que devia ir logo para a casa de São Pedro… Suas pernas não eram mais as mesmas, doíam e se preenchiam de varizes. Passava a maior parte do dia sentada em sua poltrona com as panturrilhas esticadas e a bengala ao lado.
Seu companheiro da vida inteira, o Vovô Castelo, era apenas um corpo presente. Dona Iolanda não alimentava mais nenhum amor pelo parceiro e a indiferença era recíproca. Era cada um em seu cômodo, vivendo em seu mundo particular. Castelo entre as muralhas de seu escritório onde reunia toda sorte de revistas antigas, cartazes de cinema e bolachões. Iolanda em frente à TV e ao lado da parede onde compilava uma imensidão de porta-retratos de seus parentes queridos.
O tempo, que se arrastava, voou. Vovó Iô adoeceu e foi para a casa de São Pedro. Em sua residência, quedou a poltrona vazia, a bengala fria, os inúmeros quadros onde ela posava sorridente ao lado dos entes queridos, momentos congelados… Dona Iolanda passou a viver em outro lugar, no coração de todos os seus netos. Estes jamais esquecerão de seus sermões, de quando ela perguntava por novidades, de quando pedia um dinheirinho em espécie; de quando ela pedia ajuda para arrumar sua coleção de bonecas, de quando ela os advertia para criarem juízo, de quando se queixava da ausência deles…
Tapete Róseo
Tapete róseo no asfalto Tocou na carne da memória Pedra lançada em pé de jambo Fruto doce melando a boca Pé descalço em terra quente Bola de meia no asfalto O dia era uma criança À noite, outro dia na cabeça O tapete róseo chamou meu nome Vem brincar! Só pude escrever sorriso no rosto Bobo aos olhos dos outros Viro as costas e parto Fecho aquela porta de novo. Adriel Alves
O Que Ouvi por Aí
David Bowie, sempre uma grande pedida e acredito que esta canção case bem com essa newsletter.
Para quem curte um bom punk rock com refrões pegajosos. Uma canção simples e animada para grudar na sua cabeça por dias a fio.
E para finalizar as indicações, deixo esse joia preciosa da banda Teenage Fanclub. Tem muita coisa boa escondida no mundo da música e ter descoberto essa banda foi uma experiência maravilhosa. O álbum como um todo é perfeito. Para os fãs de Power Pop.
O Que Vi por Aí
Está sendo difícil conciliar o tempo agora que me tornei pai. Se antes já demorava mais de um dia para assistir um filme, atualmente demoro uma semana. Tenho adorado essa nova fase da vida, cheia de ineditismos, mas às vezes também bate uma saudade do tempo livre.
Túmulo dos Vagalumes
A maravilhosa animação do Studio Ghibli é para nos desidratar. Impossível não se comover e não derramar uma lágrima diante desse drama de peso gigantesco. É o tipo de filme que irá morar dentro de nós por toda a vida e vai nos deixar o remoendo após assisti-lo. Os irmãos Setsuko e Seita vivem no Japão em meio a Segunda Guerra Mundial e, com a morte da mãe, são deixados à própria sorte nesse ambiente caótico. Seita dá seu sangue, suor e lágrimas para manter sua irmãzinha viva e bem. Túmulo dos Vagalumes mostra bem o egoísmo das pessoas e como o mundo pode ser injusto. Também explicita o terror e o ilogismo da guerra. O filme está disponível no streaming Netflix.
Wonderland
A proposta de Wonderland é muito boa, mas o desenvolvimento do filme nem tanto. A obra sul-coreana aborda o tema do luto e como é difícil as pessoas deixarem os entes queridos para trás. Junto a isto, traz a crítica de como muitas vezes nos apaixonamos pela ideia que temos das pessoas mais do que pelas pessoas em si. Em Wonderland, criou-se uma tecnologia, através de inteligência artificial para manter vivos aqueles que já partiram através de cenários criados com base no que desejaram os seus familiares. Assim, é possível fazer e receber ligações de vídeo de parentes mortos que estão, na verdade, realizando seus sonhos conforme queriam em vida, numa espécie de realidade simulada. O filme começa bem, mas aos poucos vai se tornando cansativo por não saber aprofundar no tema. Um potencial enorme que poderia ter sido lapidado para nos trazer uma obra cinematográfica inesquecível, mas que, infelizmente, queda no raso. Disponível na Netflix.
É isto, sem mais. Até a próxima, pessoal!
Linda crônica Adriel.
Já não tenho por aqui minhas queridas avós, estão juntas no andar de cima.
Tenho espaço no quintal, junto aos pés de café, os figos e as amoras. Será que encontro uma muda de pé de Jambo?
Por aqui são os ipês: adoro o tapete que eles deixam.